quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O retrato ficcional da sociedade

Anderson Luiz
Jéssica Nascimento

(AECA Ceunsp Ciência) Abandonada pelo marido Josivaldo e com cinco filhos para sustentar. A jovem Maria do Carmo Ferreira da Silva, movida pelo desejo de um futuro melhor, iguala-se a milhares de nordestinos. Deixa o solo seco do sertão e vai em busca do ideal de progresso que parece “residir” no sudeste. Com os cinco filhos pequenos, alguns “trapos” como bagagem e o sonho de uma vida longe da miséria, ela desembarca no Rio de Janeiro em 13 de dezembro de 1968, data em que foi decretado pelo governo militar o AI-5.

Em meio à confusão, a jovem – que anos mais tarde seria conhecida como Do Carmo – tem sua filha roubada pela prostituta Nazaré. Que forjou uma gravidez para fazer com que seu amante deixasse a mulher e a filha e casasse com ela. Assim começa Senhora do Destino, uma das novelas de maior sucesso da história da televisão brasileira.

Essa foi a fonte de inspiração para a tese de doutorado de Josefina de Fátima Tranquilin Silva. A Fina – como é conhecida – é doutora em Antropologia pela PUC de São Paulo e professora dos cursos de comunicação e artes do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio (Ceunsp). O trabalho da professora ganhou o título O erótico em Senhora do Destino: a recepção da telenovela em Vila Pouca do Campo, uma pequena cidade portuguesa nos arredores de Coimbra, em Portugal.

A princípio, a pesquisadora queria descobrir como os produtores das telenovelas da Rede Globo de Televisão trabalhavam o gênero erótico. Como era produzido e se eles tinham a noção do erotismo que existia no produto. Mas a troca de gestores do departamento Globo Universidade, que aconteceu na época, acabou sendo um empecilho para que ela tivesse acesso às centrais de produção. Então objeto de estudo mudou e Fina resolveu pesquisar como os telespectadores veem a questão do erotismo. “Todos falam muito sobre isso, mais ninguém vai perguntar ao receptor o que ele pensa”, diz a professora.

Após a mudança do objeto de estudo, ela recebeu uma proposta de sua orientadora para realizar a pesquisa em Portugal, que até 2005 estava entre os países que mais compravam e assistiam novelas da Rede Globo. Segundo a pesquisadora, o fato das telenovelas abordarem temas universais como, o amor, o ódio e o erotismo explica o sucesso da exportação dessa produção cultural.

E assim como a protagonista Maria do Carmo, que saiu de Belém do São Francisco, no sertão de Pernambuco, em janeiro de 2005 Fina embarcou para Portugal, com o intuito de pesquisar a recepção da novela de Agnaldo Silva em Coimbra. Mas, como a própria pesquisadora disse, “o destino parece interferir também no rumo de pesquisas científicas”. Depois de atravessar o oceano, ela percebeu que avaliar a recepção do conteúdo erótico em um vilarejo, com aproximadamente dois mil habitantes, localizado a oito quilômetros de Coimbra, com uma população muito conservadora, seria mais enriquecedor para a sua tese.

Vila Pouca do Campo foi o lugar escolhido pela cientista social para ficar hospedada durante o tempo de sua pesquisa, já que era uma região tranquila, onde poderia estudar em paz. Mas, depois da recepção inesperada – todos os habitantes da vila aguardavam a chegada da brasileira que vinha estudar as novelas –, Fina percebeu que mais uma vez teria de deixar as estratégias de lado.
A professora brasileira ficou hospedada em uma extensão da casa da tia de Manuela, uma funcionária da Universidade de Coimbra, que a inseriu na vida do pacato lugar. “Tive de usar algumas estratégias para me aproximar das mulheres do local, aonde quer que eu fosse estava sempre acompanhada, de Manoela ou de seus familiares” relembrou a pesquisadora. “Aliás a tia da Manoela cuidou de mim como se eu fosse uma criança (risos), lavou minha roupa, cuidava da minha casa e até me fazia comida, e se eu chorava, de saudade lá estava ela ao meu lado”, lembrou Fina.

Mas a pesquisadora também enfrentou dificuldades para se aproximar das mulheres da vila. “Por termos este estereótipo de 'calientes', e por sermos diferentes da mulheres portuguesas, que são super conservadoras, foi um pouco difícil ganhar a confiança delas”, disse Fina sobre a relação com as entrevistadas.

Das impressões que Fina trouxe de Pouca do Campo, está a mentalidade machista da grande maioria dos homens do local, que, após saberem do foco da entrevista, proibiram suas mulheres de participarem. Fina também descreveu como é a vida noturna na vila: além da igreja existiam (na época) apenas três cafés. Mas só os homens frequentavam; mulheres nesses locais depois do pôr do sol só se fossem prostitutas. “Era fundamental para a minha pesquisa ir à um desses cafés, e como nenhuma mulher quis ir comigo acabei indo sozinha” – contou a pesquisadora – “só aguentei ficar por 10 minutos, os olhares eram insuportáveis.”

Estudos culturais

Tendo como base os estudos culturais ingleses, centrando-se nas obras do crítico e novelista Raymond Williams e do acadêmico Richard Hoggart, e na Teoria das Medições do semiólogo colombiano Jesús Martín-Barbero, a pesquisa contou com a entrevista de oito mulheres. A princípio, a pesquisadora queria realizar dez entrevistas, mas não conseguiu atingir esse número, devido às dificuldades que foram ocasionadas pela timidez que afugentava algumas mulheres e também pela proibição dos maridos.

Antes de embarcar para a Europa, Fina reuniu 15 cenas que ela considerou eróticas, tomando o devido cuidado para que não entrasse nenhuma cena que fosse inédita em Portugal, já que a novela começou a ser exibida lá quatro meses depois de sua estreia no Brasil. As entrevistas eram realizadas nas casas das mulheres que aceitavam participar, as cenas selecionadas eram apresentadas às entrevistadas em um notebook, já que não existia a possibilidade de assistir a novela com elas, pois ela ia ao ar após as 22 horas.

As entrevistadas tinham entre 19 e 50 anos de idade e suas respostas mostraram que a forma de assistir novelas dos portugueses é muito diferente da dos brasileiros. O que acontece nas tramas globais não vira assunto das rodas de conversa. Nas salas de visitas (local onde eram realizadas as entrevistas), Fina ouviu as críticas dessas mulheres, que as vezes se referiam aos momentos eróticos da trama como “cenas porcas.”

Segundo a pesquisadora o constrangimento era nítido. Ela percebia como as portuguesas ficavam incomodadas com aquilo, mas, mesmo assim, não desviavam o olhar. Fina acredita que essas mesmas entrevistadas, quando estão assistindo a um capítulo qualquer, não mudam o canal quando cenas como as que lhes foram apresentadas vão ao ar.

A pesquisadora relembra duas entrevistas que foram gravadas às escondidas, pois os maridos haviam proibido as esposas de participarem. Vila Pouca do Campo, que pode ser considerada um vilarejo de camada popular, dentro dos padrões econômicos europeus, é uma região de população majoritariamente composta de operários e faxineiras, que chegam a faturar por mês salários de aproximadamente 400 euros. O espirito batalhador dessa gente é, para a pesquisadora, o que explica a identificação das mulheres acima dos 30 anos com a protagonista Maria do Carmo, personagem interpretada pela atriz Suzana Vieira.

A identificação com os personagens ia além. Fina conta que era possível observar uma certa simpatia pela vilã Nazaré Tedesco, personagem interpretada pela atriz Renata Sorah. Já as entrevistadas que tinha entre 19 e 30 anos admiravam a personagem Duda, vivida pela atriz Débora Falabella, uma jovem rica apaixonada por Viriato, um rapaz de classe média, personagem de Marcelo Antony.

Após cinco meses em Vila Pouca do Campo, a pesquisadora voltou para o Brasil, trazendo o material que seria necessário para a elaboração de sua tese e uma experiência de vida inesquecível.

A fórmula mágica

Fina acredita que é o conjunto da obra que faz uma novela de sucesso. As músicas, os cenários, os figurinos e as pessoas como autores, diretores, roteiristas e atores interagem para chegar ao público. Sem esquecer o que ela chama de território de ficcionalidade, um conceito do teólogo francês João Calvino. A pesquisadora considera o melodrama como o principal território de ficcionalidade, pois é um elemento da novela que arrebata as pessoas.

O melodrama, característica de todas as novelas, é uma das garantias de sucesso, seja no Rio de Janeiro ou em Vila Pouca do Campo. Fina destacou que a maciça participação de atores de teatro nos folhetins de TV foi um dos fatores que deram à novela brasileira a excelência que ela possui hoje.

A tese de doutorado foi defendida em 2007, mas os estudos foram além. Em 2010 Fina passou a integrar um núcleo de estudos da PUC de São Paulo que desenvolveu uma pesquisa para a OBITEL (Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva). 
 
Foi realizada uma varredura nas redes sociais, buscando no orkut, no twitter e no youtube informações que mostrassem como a rede Globo de televisão está se adaptando à revolução da informação. E como os telespectadores utilizam as redes sociais para detonar um fluxo de conteúdo, a pesquisadora acredita que a relação novela-redes sociais pode se intensificar, até onde as produtoras permitirem.

Anderson Luiz e Jéssica Nascimento são estudantes do curso de Jornalismo do Ceunsp
(Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio)


  Josefina Tranquilin, doutora em Antropologia

Nenhum comentário:

Postar um comentário